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rascunho

Faz mais de duas horas que parece que tenho um rio dentro do ouvido... já me distraí com outras coisas, mas a água não pára de correr ruidosamente dentro da minha cabeça... esse som angustiante pra um fim de dia de suposto descanso me fez ter vontade de escrever. mas escrever assim, sem muito rumo nem receita. sem ser poema, sem ser prosa. com jeito de só uma prosa de vizinhos e chimarrão, sem comprometimento com modos prévios ou opinião alheia. tenho agora duas felinas por perto, um violão dormindo do meu lado na cama, o ruído da água do meu rio e o ruído da água que uma das gatas bebe na tigela. tenho lembrança de creme dental no céu da boca, o que me faz lembrar que pretendia logo dormir, tenho a respiração frouxa e os dentes presos por metais que fazem a cabeça doer. tenho o calor do laptop na barriga e as mãos um tanto ressecadas de limpar as flores de corte no trabalho. tenho um diálogo na lembrança. já não sei se isso é um rio ou a água do chuveiro quando uso a touca recheada de bolinhas de isopor no banho. não escrevo mais, acho que desaprendi. sempre pensei que poemas surgissem espontaneamente, como esse rio. ou chuveiro. lembrei que tenho um trabalho que me espera amanhã. amanhã é domingo, mas não qualquer domingo. tenho trabalho amanhã. quando escrevo, raramente é sobre as pessoas da minha vida. tenho algumas, poucas, pode-se dizer, pessoas da minha vida. e se não escrevo sobre, não significa que elas não sejam essenciais na vida que levo. só não sou muito sentimental. eu tive medo de me tornar piegas a vida toda. por isso não falo muito. medo de ser piegas não me ajudou a não ser piegas. acho que fui até em momentos em que não devia. e deixei de ser quando seria perdoável. fazer o quê, ainda hoje procuro caminhos pra me comunicar direito. poucas vezes consegui me comunicar o quanto gostaria, em alguns assuntos. mas essas poucas vezes foram de um valor gigantesco. meu rio é mar, é onda, é espuma. e nele flutua quase tudo que tenho, desde medo até saudade, desde pieguice até silêncio. em algum momento, eu troquei o hábito de atirar palavras pro mundo pelo hábito de engolir palavras, mandar pro estômago. elas viravam mariposas, formigas cortadeiras, todo tipo de ser ou coisa. e me devoravam, de dentro pra fora. acho que consigo ter uma criação cada vez menor de monstros na barriga. porque muitas das palavras que me envenenavam agora são expelidas, e algumas voaram pra algum outro canto do mundo. na certa esperam que meu pensamento as chame de volta. se eu conseguir continuar domesticando-o, elas podem construir casa lá longe. e eu não vou fazer nenhuma visita.
Peguei no sono no meio do caminho. Agora já é o outro dia, e meu ouvido continua com intensa movimentação e ruído, e isso já tá passando do limite. Vou postar isso até aqui, talvez continue mais tarde.

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