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À noite...

Ela andava bem cansada... Cansada de querer sentido pra tudo, de buscar de forma ineficiente as respostas pro milhão de dúvidas que não saíam de sua frente, nem por um segundo. Há um tempo, estava muito próxima de desistir de uma vida diurna e produtiva. Somente a noite lhe fazia bem. Só a rua lhe distraía - bem pouco, de qualquer forma - da indigestão e da garganta apertada por "não-sei-o-quê". Se saía das pequeninas frações de tempo em que conseguia esquecer, ia para a nauseante busca pela consciência - algo que ela quis, buscou, esforçou-se muito pra conseguir, até há um certo tempo - e perdia-se e perturbava-se e estranhava-se e por muito pouco enjoava até que a boca do estômago apertasse tanto até quase sufocar. A urgência por uma reação a estapeava a toda hora, lhe agarrava e apertava a face, a sacudia e a exigia que olhasse pra frente, pros lados, pra todos os cantos, pra que enxergasse algo além de sua angústia. O tempo manteria-se implacável e móvel, não a esperaria descobrir o porquê. Ou melhor, os porquês. Tudo por causa de sua maldita mania de querer, a todo custo, descobrir os porquês. O que importam eles, afinal? Seria muito melhor ser burra, alienada e feliz, como dizia Caio F., seu mais novo escritor preferido. Danem-se os porquês, a felicidade estaria numa cerveja, num cigarro, numa fútil e desbotada noite acompanhada. E, na manhã seguinte, dormir nua e descoberta, as janelas muito bem fechadas pra evitar a luz. Dormir muito, até muito tarde, acordar somente para um banho frio que a fizesse voltar à sua inútil e insípida realidade. E agora, ainda havia luz lá fora, e as pessoas estavam todas ali, prontas a encará-la em cada pedaço de calçada. Não, a rua agora não, disse a si mesma em frente ao espelho que mostrava-lhe crua e friamente as olheiras de mais uma noite de falsos carinhos, beijos com gosto de cigarro e conversas insuportáveis de (não) querer conhecer alguém. Sua garganta era seca, seu corpo sedento, suas pernas quase que não sustentavam o corpo marcado, ela sentia fome. Engoliu um sanduíche que ainda resistia quase solitário na geladeira, aumentando ainda mais o nó na garganta. O café forte, quente e sem açúcar a deixou uma sensação de inquietude e as mãos tremendo. Era preciso acalmar-se. Poderia dormir, mas, àquela altura, o sono já a abandonara. Ah, música talvez. Chico dizia: vou voltar, palavra de mulher, eu vou voltar, me espera... Assim ela queria também voltar, voltar à mesma e acomodada vidinha de quando não vivia de procurar os nomes e os significados de tudo. Aquele excesso de informação estava a fazendo muito mal ultimamente. Queria conseguir entregar-se às coisas e às pessoas de uma maneira que a fizesse pensar que estava tudo bem. Aos poucos, o dia ia ficando mais escuro e menos quente, e ela já começava a preparar-se para, agora sim, respirar o ar da rua. A escuridão a fazia bem, o cheiro e as pessoas da noite a distraíam um pouco da inquietude. O álcool a acolhia para parecer e fingir-se feliz. E, mais um dia se esvaía, restando agora, felizmente, um a menos pra suportar o desassossego. A rua fazia-se sua mais compreensiva companheira, e a deixava ter alguns poucos restos do que já havia sido um dia, bem menos curiosa e exigente consigo mesma. Ia tonta, amortecida e sonolenta pra casa, era preciso dormir agora.

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